Bicas, o cão-pastor
Entre a aldeia de França (km 0 aos 670 m de altitude) e o alto da Lama Grande (km19,5 – 1380 m) parámos qual proficientes estrategas na serrana aldeia de Montesinho (km12 – 1007 m) para uns galões, um queijinho e umas informações. Tudo tomado num só gole à mesa do café que, não sendo café de cidade não se chama Café Central mas, em sintonia com a sua localização aldeã, chama-se então Café Montesinho.
A altura do sol, a cor das nuvens no céu, a distância que calculávamos termos ainda de percorrer até ao abrigo na Lama Grande, foram argumentos para que num instante as mochilas voltassem às costas e as botas se fizessem ao terreno. À esquerda deixámos a Casa do Povo, acolá um quadro com um mapa do parque, adiante a estreita rua por onde devíamos sair. Dez, quinze passos dados e da direita vem, escadas a baixo, ao nosso encontro, um cão branco de pelo cerrado, FIGAS ANDA CÁ!, gritou a velha vestida de preto que estava sentada na nesga de sol ao cimo das escadas. Mas o Figas - ou Fisgas, como a um de nós pareceu ter ouvido, ou Fragas como a outro soou mais enquadrado – não quis saber de apelos. Exibiu-nos piruetas, esfregou-se às parvas na terra e depois nas ervas, e zarpou pelo seu mundo a dentro, connosco querendo partilhá-lo como um verdadeiro cavalheiro senhor de montanha.
Ainda o enxotámos duas ou três vezes, vai p’ra casa pá que nós não vamos dormir a Montesinho. Mas o bicho fez-nos orelhas mocas e tratou de nos impor um ritmo de caminhada, farejando o caminho à nossa frente, chamando-nos a atenção para os desvios do trajecto e ainda nos mostrou bons atalhos e até como se brinca com uma raposa. Cumpriu bem a sua missão de fiel acompanhante e vigilante mas chegados à Lama Grande nem uma rodela de chouriço tínhamos para lhe dar – enfim, lá se lambeu com pão, biscoitos de azeite e brownies. Ainda o convidámos a entrar no abrigo, que estava aquecido pela lareira, mas o bicho não se devia sentir bem debaixo de tecto e aquele frio devia ser trocos para ele. Acabou por passar a noite lá fora, e ainda nos assustou com os seus passos na pedrisca ou com os ruídos arejados de cão que procura pulgas nas suas partes íntimas. De manhã, quando acordámos, o cão já não estava lá, teria partido para os que lhe davam comida.
Mais de 20 km depois chegámos à aldeia de França com os pés feitos em tábuas e a alma recheada de belas vistas. Apanhámos o carro, jantámos com o empate do Benfica-Sporting num restaurante de beira de estrada e acabámos por ir dormir a Montesinho. O bife de quase meio quilo que tinha sobrado do jantar tinha um destino: um pagamento retroactivo!
E se Montesinho é uma pequena aldeia: acabámos dormindo numa habitação sobre o Café Montesinho; a dona do café era também a dona do Figas que afinal de contas se chamava Bicas. E o Bicas, onde estava? Tinha chegado cedo à aldeia na manhã passada, e foi logo “apanhado” pela dona, a sair debaixo de umas escadas com ar comprometido. Não perde a festa com um grupo forasteiros de botas e mochilas que se faça aos caminhos que ladeiam Montesinho – aos locais não liga pevas. Agora estava de castigo, fechado num quintal – ainda que cheio de espaço, ali para trás da igreja.
Fomos lá dar-lhe o bife mas o que ele queria era vir connosco, pastorear-nos!
O Bicas foi um verdadeiro cão-pastor e nós o seu rebanho sem tresmalhos.
O Bicas foi um verdadeiro cão-pastor e nós o seu rebanho sem tresmalhos.
2 comentários:
Eu, que acho que tenho fraca memória, não vou esquecer o Bicas tão cedo...
Só faltou contares a história por trás da foto, isto é, como a foto foi tirada graças a uma dupla de acrobatas que se empoleirou no portão-anti-raposa...
Isso é que foi um belo passeio!
Só não me atrevo a sugerir o Bicas para vereador: tem demasiadas qualidades para o cargo.
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