26 junho 2007

Resumo a meio caminho

Coimbra, do Convento de Santa Clara-a-nova

O Mondego e o Douro serenos, Coimbra e o Porto a escorregarem. Nas fotografias as semelhanças encontram-se mas no tamanho das ruas, nos centros de cada bairro, no ritmo das gentes: acumulam-se diferenças.
Estes dias correm mais do que as minhas pernas conseguem acompanhar. As cidades estão sempre a chamar-me para aqui e para ali. Os respigos amontoam-se à espera de um computador com menos nervos que estes.

Porto, a meio vão da Ponte D.Luís I

21 junho 2007

Dentro do Mapa

Fugindo antes que o Inverno chegue, Dentro do Mapa 2007 parte alinhado com o solstício de Verão. Segue sobre carris, entre Coimbra e Guimarães, entre o Porto e Mirandela. Destino: Lisboa!
(não se podem prometer Respigos se bem que a eles se aspire.)

19 junho 2007

Quem manda aqui sou eu!

Lagoa das Braças, Fig. da Foz, 02.02.2007 Pisco-de-peito-ruivo
Erithacus rubecula

Todos conhecemos o amigo Pisco! (excepto talvez os dois a quem é especialmente dedicado este post e que depois da leitura devida espera-se que venham a tornar verdade a primeira frase deste escrito.)

Em Cabo Verde um pisco é um petisco, para ser comido. No Perú e no Chile o pisco bebe-se!Trata-se de uma aguardente de FUEGO que mais parece um ancinho a coçar-nos a traqueia! Ainda no Peru, e talvez explicando a origem do nome desta bebida, Pisco é nome de uma província, de uma cidade, de um vale e de um rio localizados na região de Ica.
Cá em Portugal temos a Serra do Pisco, perto de Trancoso. E senhores e senhoras de apelido Pisco há-os montes (o nome é de origem judia, está incluído no Dicionário Sefaradi de Sobrenomes). Também chamamos pisco aos míopes. O mais conhecido deles é Estrabão, o pisco – precisamente estrábico! Depois há os que "comem como um pisco", fazendo jus aquela pancita redondinha onde pouco deve caber.

Finalmente, o Pisco pode ser visto... em cartões de Boas Festas (um, dois exemplos apenas), onde aparece rodeado por neve e de penas tufadas, em selos originários de quase todo o mundo e até em pose nalgumas caixas de fósforos!

Pois é, todos conhecemos o amigo Pisco! Nem que seja num dos pontos do rol atrás apresentado. Mas também há Piscos a sério, dos que voam e saltitam em jardins e em florestas.

O Pisco é do tamanho de um pardal. Nas estações mais quentes alimenta-se de insectos, incluindo aranhas e outros invertebrados. Quando vem o frio, e os insectos se vão, recorre a bagas e outros frutos porvezes alguns que tenham sido desfeitos por outros animais. Nos países do norte da Europa, na época da neve, é vulgar ser alimentado pelas pessoas havendo relatos de encontros emocionantes.
Em Portugal, os Piscos que nidificam são residentes. Mas recebemos visitas de alguns outros Piscos vindos em fuga do frio do Norte da Europa – passam cá o Inverno e regressam para a procriação. Fazem os ninhos em buracos no solo, taludes, buracos em árvores.

Com o seu aspecto catita, com um distinto peito ruivo sobre um par de patinhas a lembrar pés de cerejas e com este canto artístico durante quase todo o ano, se avistado o Pisco é fácil de identificar. E diga-se em coro: oh que querido, tão fofinho! e queridinho por ter a) um peito ruivo que b) incha e fica tão fofo, por c) cantar que se desalma e ser d) um curioso atrevidote.
Mas este pirralho engana! Quatro encantos estes, quatro presentes envenenados. O Pisco-de-peito-ruivo é a ave que mais ferozmente defende o seu território. É tão feroz como querido: é capaz de matar um invasor em terras suas. E agora desmistifique-se também em coro: Xi, a sério? ca bruto por ter a) um peito vermelho-semáforo indicando “entrada expressamente proibida” b) que incha “sou só musculo ferrado no ginásio” c) um canto todo o ano “aviso-te que isto não é só garganta" e d) uma curiosidade de “chega-te aqui chega e vais ver”!

Mas esta agressividade do Pisco tem uma razão de ser e não é nem económica nem religiosa nem política nem idealista. O Pisco é um estranho caçador. Não persegue os insectos num céu sem limites nem passa o dia entretido a bicá-los do solo. O Pisco pratica o “empoleirado e cá-vou-eu”: à paciência de uma sombra, poisado num ramo rente ao chão, o Pisco espera que surja uma centopeia, uma minhoca, um mosquito para a ele se lançar de surpresa e Zás está!; como plano alternativo, para alturas mais fracas, lá salta para o chão a debicar o que aparecer. Ora assim sendo até se entende. Eu cá se fosse Pisco não queria barulho no meu terreno, não queria concorrência que me afugentasse a janta, minha e dos meus filhotes, precisava de privacidade e calma sobre o meu reino!

Se se dá o azar de dois Piscos se julgarem reis da mesma propriedade ui! As hostes abrem-se com o canto dos guerreiros. É um diálogo de ofensas e ameaças como nem os Exterminators teriam coragem de proferir, sobrepondo os discursos, num despique musical que pode durar horas e encantar os domingueiros que se passeiam por ali. Quando finalmente se acareiam lançam-se ao chão, tufam as penas e inclinam-se. Se nenhum se retira, vale arrancar olhos à bicada! Macho e fêmea lutam com o mesmo empenho pelo seu território.

A meio do Inverno é tempo dos Piscos se enamorarem e o macho muda de canto. Apesar do macho agora passar os dias a cantar para engatar uma miúda, a fêmea passa algumas dificuldades até que ele entenda as suas intenções (o costume!). Ele demora a distingui-la entre amante ou invasora, mas quando as coisas se esclarecem, lá se casam. A fêmea caça, o macho canta, e ainda falta até que a Primavera faça das suas. Depois dos filhotes criados, afasta-se o casal e cada um volta a defender o seu reino.

Curiosamente (ou não tanto) os maiores fãs deste Pisco são, sem dúvida, as gentes do Reino Unido. O Pisco, aliás o Robin (aliás o Robin europeu, a não confundir com o Robin americano) é praticamente considerado a “ave nacional” – parece que só falta oficializar a relação. Este amor dos britânicos pelo Robin deve-se, claro, ao seu ar fofo e ao seu cantar melódico, mas também ao facto de ser uma ave presente todo o ano que encanta o branco dos Invernos com o seu peito ruivo, aproximando-se dos humanos (e então se forem britânicos...) para ver se ganha alguma migalhita.
Até à idade média chamavam-lhe Redbreast (ainda o fazem os franceses usando o Rouge-gorge - como se não houvesse outro pássaro de peito-ruivo) ou Ruddock (palavra do Inglês antigo para “red”, também alcunha dada aos ruivos e persistindo ainda hoje como apelido). Mas depois, os inglêses acharam que como a fêmea não tinha o peito ruivo não lhe podiam chamar Redbreast – enganavam-se, estavam a confundir a pequenita carriça com a Sra. Robin que essa sim tem o peito ruivo. E como quem põe o nome a um filho ficou o macho Robin e a carriça Jenny .
Desde adivinho meteorológico consoante se esconde ou se encima num arbusto para cantar; desde ave piedosa que tirou os espinhos cravados no corpo de Cristo; passando por gentil protector de abandonados corpos mortos que cobre com musgo e folhas; saibam que até os carteiros Vitorianos foram chamados de robins redbreasts por usarem uniforme vermelho e que este Pisco é cantado por tantos poetas britânicos, e encanta em muito contos infantis e não tão infantis. Mas ainda assim diga-se, só depois do Mourinho virá o Pisco!

Para este post espreitei (entre outras coisas que foram mais de passagem e mais-que-a-conta):
aqui em português familiar, aqui em francês, e aqui um mero acaso em pesquisa de última hora mas que gostei muito! Ah, também espreitei este livro na sua versão de páginas verdadeiras, de papel.

E, já que o post vai curto, aproveito para vos fazer voltar a observar a foto lá de cima. Parecia que o Pisco estava a posar? a lançar um olhar de curioso? Mas reparando bem... parece mesmo que nos está a olhar de lado, não é?

Lagoa das Braças
Figueira da Foz
2 de Fevereiro de 2007

18 junho 2007

"Quando o Inverno Chegar"

texto de José Luís Peixoto
encenação de Marco Martins
pelo Teatro São Luiz, 2007

Heróis? Beatriz Batarda!, Dinarte Branco! Admirações? José Luís Peixto; João Mendes Ribeiro. Referências? Marco Martins e Nuno Lopes. Não estar a ver quem é? Gonçalo Waddington (... ah afinal é este!).
Sem dúvida um conjunto de ingredientes do melhor que há. Assim como uma ida ao Corte Inglês - mas uma ida desprendida das custas - para comprar as coisas do jantar de amanhã! Com gosto e dedicação se misturam, se cozinham e se apuram os ingredientes mas no final temos três ou quatro pratos gourmets, cada um exibido com estilo num prato de serviço diferente, e com mestria encantando cada canto da mesa. Até condizem. Comem-se, satisfazem-nos mas a refeição sabe a foguetão vai-e-vem, a centopeia desmembrada, a estilhaçado. Não se aconchegam na barriga com a devida juntura. Foi mais ou menos assim que me senti ao digerir este Quando o Inverno Chegar. (Também gosto de pensar nesta peça como “talvez uma manta de retalhos bonitos, que até condizem, mas que não aquecem”.)

No programa do espectáculo explica-se o resultado desta empresa apregoando tratar-se de uma missão de cumplicidade entre as ideias dos protagonistas de cada uma das artes do teatro: encenação, texto, actores trabalhando num conjunto desde o início. Um princípio interessante! Como escreve José Luís Peixoto, é bonito pensar no teatro como a "arte do encontro". O problema foi que as personagens não se “encontraram”. Cada uma foi forte como pode, coerente com si mesma, mas depois… lá está o jantar não se aconchega na barriga nem a manta de retalhos nos aquece as pernas.
A criação das personagens não foi aqui deixada a Deus Nosso Senhor. Também depois da leitura do programa, vim a saber que a equipa se baseou numa coisa-moderna que é o método de Mike Leigh (nome do realizador de Vera Drake que, entre outras coisas, é adepto de deixar os actores criarem as personagens, eles próprios, recorrendo a largos momentos de improvisação e a um forte e constante diálogo entre os actores e o realizador). Em Quando o Inverno Chegar talvez tenha faltado pulso ao encenador e a determinação com que cada actor construiu a sua personagem talvez se tenha sido forte demais.

Mas também de coisas bem conseguidas se fez a noite passada. Para começar, ao levantar do pano os queixos dos presentes caíram, em uníssono soltaram Ooohs e Aaahs! O cenário é de uma beleza exacta. É um "Xiça que coisa bonita, do mais bonito que vi!!". E põe em prática, com eficácia, a ideia de em apenas um cenário se conseguirem criar espaços que capazes de se individualizar de todo o conjunto.

(Dois à parte relevantes: não se pode deixar de fazer referência ao abuso que foi abater aqueles pinheiros enquanto jovens. Pensamos que com certeza vão dali para tábuas e de tábuas para estantes que guardam livros. Não está mau. Mas talvez seja mais provável que acabem antes em palitos ou lenha de enfeitar. Bom, e não ainda menos se pode deixar de fazer referência à antipatia dos arrumadores do São Luiz! Não metam lá umas meninas giras não, assim nunca mais animam aqueles homens caretas, e a factura vem debitada à ordem dos espectadores (ainda mais se tiverem ido à borla). E aparte-se o à parte.)

E claro, lá bem do cimo desta montanha mágica (inspirada na montanha de Thomas Mann) os heróis Batarda (é só mais uma coisita) e Dinarte reforçaram o seu posto altaneiro. Naquele sanatório, onde a inércia e o medo de mudar e de arriscar mandam mais que a teimosoa tuberculose, parece-me que só a esperançada Menina Lena se fartou de esperar pelo seu noivo Lucas. Os três doentes, esses, vão ficar à espera de Godot. Ou do Inverno.

(É a Gaivota que nos trama. Ainda.)

14 junho 2007

"A Gaivota"

A Gaivota
de Anton Tchekov, 1896

Esteve já em cena, vai para mais de um ano, esta mesmíssima Gaivota de Tchekov. É portanto boa de chorar por mais, ou não teriam as sessões estado tão esgotadas que até deu direito a este novo conjunto de espectáculos!

Anton Tchekov nasceu no sul da Rússia em 1860 e morreu na Alemanha em 1904. Estudou e exerceu medicina mas, segundo ele próprio, amantisou-se com a literatura. É autor de outras peças de teatro mas também de muitos contos cheios de tristeza e humor russos - pensando bem (ou pensando só) um belo propósito para uns post's.

Sobre esta peça pouco me atrevo a deixar escrito (liguem-me para o telemóvel se me quiserem ouvir!). A sua estreia em Outubro de 1896 foi estilo catástrofe com tudo a correr mal e o público a fazer chacota da representação. Escrita como comédia em quatro actos acaba num final trágico, e recheia-se contendas artísticas entre gerações, de alguém que ama outro que ama outro que ama outro que ama todos, mas sem um enredo espalhafatoso, e tantas vezes visto mesmo como não tendo acção, como sendo parado.
Logo no primeiro acto um dos personagens, Treplev - o escritor jovem, começa por defender que o teatro não tem nada que representar a vida! E resumo os meus pensamentos: esta peça é um bocado de vida. Um bocado de uma vida que não é a minha, mas que consigo ver e sentir da mesma forma com que só eu vejo e sinto os bocados da minha vida. É um condão conseguirem levar-nos (no teatro, na televisão, onde for…) assim para vida. Vale o Tchekov, vale o Cintra, valem os intérpretes, vale o cenário até quando não lá está. Vale o teatro, ora pois!

Espreitem a ficha técnica e o texto do Luís Miguel Cintra que dá para ler umas quantas vezes sem nos fartarmos. Fica também o horário da bilheteira e a localização do Teatro do Bairro Alto (que não é no Bairro Alto!). Sigam!

Claro que não resisto a deixar isto, para os mais corajosos, ou a recomendar isto, para todos!
Já vi três vezes... e está tudo dito!, como diz Sorin.

13 junho 2007

Sobre e sob Santo António

4 quadras, 4 desejos

Moedinha que vais no ar:
Ser tia não aguento mais
p'ró ano faz-me casar
Ou ser tia de Cascais

Moedinha voa-voa:

cai aqui p'ra eu te apanhar
fujo escondido por Lisboa
sem mãe, sem pão, sem lugar

Little coin blown away:

I wish I'll go to bed soon
Acerta no Santo! they say
But I rather hit the moon

Moedinha que vens lançada:

apontada ao meu nariz
não te acho nem piada
sou o Santo quem to diz!


(Dedicado aos que passam a noite de Santo António em Luanda.)

12 junho 2007

oh mighty Beastie Boys!

11.06.2007, Aula Magna, Lisboa

Para mim pouca diferença há entre dispor-me a assistir ao Berlioz no Coliseu dos Recreios ou aos Beastie Boys na Aula Magna. À partida não sou grande especialista nem conheço de cor quer um quer outro, e à chegada a diferença também não foi muita. Cada um deles: Grande Bomba! (estamos sempre a aprender!)

Os Beastie Boys são um trio de nova iorquinos brancos esticadinhos com ascendência judia e ligações aos bairros de Brooklyn e Manhattan. Do que andei a investigar, descobri (entre outros, aqui e acolá) que os Beastie Boys começaram por ser, em 1981, um quarteto. Só em 1984 o grupo passou ao trio dos dias de hoje, quando o Adrock se juntou a MCA e a Mike D. Ao álbum Paul's Boutique, de 1989, os estudiosos aplicam o rótulo de "charneira" ou "breakthrough": deixaram de ser white wanna be rappers. De inspiração funk, o álbum recheia-se de loops, funky beats, scratches e samples. Estes últimos, os samples (sons, frases, trechos de outras músicas reciclados, das mais diferentes formas e feitios, e posto dentro de um nova música), foram em Paul's Boutique uma inovação e o pontapé de saída para tudo o que viria a ser feito sobre o hip-pop. (e lá está, sempre a aprender!) Esta coisa dos samples deve ter muito que se lhe diga. Para começar torna as músicas mesmo divertidas. Ainda há pouco, numa das músicas que estava a ouvir do Paul's Boutique, cruzei-me com um bocado de um programa de rádio, depois foi o Johnny Cash!
Uma breve procura no Google devolve-nos uma pilha de atitudes associadas aos Beastie Boys: hip hop, rock, punk rock, mcing, funk, jazz e responsabiliza-os por serem os precursores de coisas estranhas como o Rapcore ou o nu metal. (e de novo sempre a aprender!)
Bom, e posto isto parece-me que os Beastie Boys são mesmo a Pangeia dos sons novos que se ouvem!

O espaço da Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa é um espaço muito especial. Pequeno, caseirinho, com uma audiência que se espraia para o palco numa forma que, aposto eu, encantará os próprios artistas. O espectáculo de ontem chamava-se Gala Event – Exclusive Instrumental Show, antecipando o álbum instrumental que os Beastie Boys vão lançar em breve.
Ali dentro daquela sala juntaram-se e aconchegaram-se as emoções de cada espectador, que foram crescendo à medida que também os Boys se punham à vontade e trocavam brincadeiras de puto entre eles. Foi muito bem disposta a sua atitude para com o público e os VIP's, sentados nos cadeirões dos reitores. Trocaram-se bengalas, piropos, danças e até um verso rapado por uma menina da audiência teve resposta espontânea pelo Dj de serviço. A conversa daninha que surgia entre os três durante o intrevalo entre as músicas poupou-nos à habitual fita dos encores. E foi um fartote de rir assistir àquela desconversa entre os três, sobre que música iam tocar no final. O Adrock disse a duas ou três que não, essa não sabia. E lá acabaram de microfone em punho a dialogar enquanto o senhor das teclas subiu para o seu instrumento e se pôs a tocar com os pés (sim, calçado!) - depois partiu o microfone e ainda bem que não houve mais nada a seguir, não fossem partir-se braços ou pernas.

Vamos esperar para ver aqui o que vão os Boys dizer da sua experiência na Aula Magna.
E entretanto o The Mix-Up que "spits hot fire" sai já-já no próximo 26.

Sabotage
Ill Communication, 1994

do então desconhecido Spike Jonze

11 junho 2007

Marcianos no Torel

Periquitão-de-cabeça-azul
Aratinga acuticaudata

Andava meia Lisboa à espera de ver ao vivo estas aves enquanto a outra meia esperava por ver desvendado de que espécie se tratava afinal. Ok, não era tanta Lisboa assim, era mais ou menos, ou vá lá... mais para o menos que para o mais, mas com empenho e decisão!

Devo anteceder o relato explicando que estas dúvidas foram há tempo levantadas numas conversas entre amigos e, depois, alinhavadas aqui no meandros dos blogues, com especial afinco nos comentários a este post do nosso Bzz. O que seriam aqueles seres verdes que se avistavam no Jardim do Torel, durante o voo, arrastando cauda comprida e em chinfrineira de despique? Eu por mim arrisco já: marcianos, só podem!

Ontem, finalmente, armámo-nos de máquina fotográfica e fomos à caça para o Jardim do Torel, aqui em Lisboa, ao lado do conhecido Elevador do Lavra. Do miradouro no alto do monte de Santana, lançam-se vistas sobre o monte de São Roque. Atravessando a Avenida da Liberdade, espreita-se desde o Tejo até à bandeira portuguesa da Feira do Livro no topo do Parque Eduardo VII, e isto passando pelo Chiado, pela estação de comboios do Rossio, pelas obras São Pedro de Alcântara que concorrem com as de Santa Engrácia e pela a mancha verde do Jardim Botânico, sempre com o olhar intersectando todas aquelas as ruas que caem colina abaixo.
O Jardim do Torel foi construído no início dos anos 30, pela Câmara Municipal de Lisboa, sobre os doados terrenos da que outrora fora a quinta do desembargador Francisco Xavier da Cunha Thorel, com o seu palacete mandado construir no início do séc. XVIII. No ano 2000, o jardim sofreu uma remodelação profunda. Parece que as águas da chuva ficavam retidas nos terrenos e os muros de contenção começavam a queixar-se do esforço.
Não conheci o jardim de antes, mas hoje é um lugar muito bom para se estar, observando o frenesim urbano à sombra de palmeiras e ao som do assobio dos melros. Mais ou menos como comer um gelado com molho de chocolate quente ou trincar uma torrada depois de um quadradinho de chocolate.

Mas isto vinha tudo a propósito dos marcianos que suspeitávamos terem erguido tenda no Torel. Nos dois guias de campo, previamente consultados, havia apenas uma sugestão: o Psittacula krameri. Assim sendo, as probabilidades de se tratarem de Periquitos-rabijunco, também conhecidos por Periquitos-de-colar (ambos nomes portugueses para Psittacula krameri), eram tantas quantas as probabilidades que eu tenho em não acertar no Euromilhões.
E foi com esta convicção que nos sentámos à espera dos vivos que sempre aparecem, numa conversa como as cerejas quando zás-tráz!, lá iam os suspeitos, voando sobre as nossas cabeças, entre as copas das árvores, até que mergulharam rumo à Liberdade para… êh-hop! logo ascenderem de regresso, pousando bem a jeito de uma espreitadela e uma disparadela.

Mas… periquitos-de-colar? Aqueles? Como? Só se tivessem deixado os oiros em casa! E só se tivessem pintado os bicos com batom amarelo, posto rímel branco para realçar o olhar e aparado as penas da cauda, afinal sempre é mais prático. O que seriam então estes marcianos-não-identificados? Será o Torel é mesmo um posto estratégico para Marte nos atacar?
Com grande habilidade, forte instinto, persuasão a roçar o doentio e com as graças divinas da Internet, lá descobri que estes marcianos estão disfarçados de periquitões-de-cabeça-azul, Aratinga acuticaudata - aves exóticas originárias do continente sul-americano mas observadas em Portugal e com direito a nome na lista das aves exóticas observadas em liberdade em Portugal continental, de Rafael Matias. Já que são apreciadores de ambientes tropicais, atrevo-me a dizer que este casal se terá encantado pelas palmeiras do Torel, comendo sementes, frutos e flores. Contudo não se registam reproduções no território nacional e em 1998 parece que apenas haviam sido avistados 7 exemplares (dados segundo esta bela página de nuestro hermanos).

Desvendado o mistério da identidade destes seres verdes que sobrevoam o Torel fica no entanto um pouco de frustração sobre a parca informação disponível relativa a vida destes bicharocos em terras lusitanas. Ok, são raros, compreende-se mas eu assim reforço mas é a minha suspeita: estes são mesmo marcianos disfarçados e atenção porque alguma coisa andam a preparar!

Probabilidades contrariadas talvez agora seja boa altura para eu começar a apostar no Euromilhões.

07 junho 2007

Ovelhas Montesas

(precisa de som, a dar para o alto)

Primeiro era o assobio. Depois do longe chegou o sonido de uns badalos e para o fim não se ouvia outra coisa para além daqueles chocalhos. Quais melros quais chamarizes quais quês! Aquilo eram as feras que vinham aí, vinham chegando e vinham rápido, em corrida doida que se alongava e aproximava com um tom alarmante. Devíamos fugir? Ai, mas então para onde? Mas onde estavam elas? De onde vinham? Viriam danadas? De olhos semicerrados, mão de índio sobre a testa, olhava-se. Nada. Não se avistavam os bichos, que raio?! Esconderijos? Saídas de emergência? Escapatórias? Nada, só os chocalhos continuados e berrando cada vez mais alto! Um destino trágico? Iriam as bestas assomar-se sobre a caçada que, rígida pelo susto, se deixaria vencer antes de ter sequer entrado na batalha? Não! Ali-ali, é o monte que se está a mexer, ali! Mas não se mexiam as árvores, nem os calhaus nem os arbustos. Mexia-se o próprio chão. Como? Era uma onda de ovelhas que vinha descendo o monte ao sprint! Pareceu-me que algumas se tinham deixado enrolar e rebolavam colina abaixo, outras, ainda lãzudas, espalhavam caracóis ao vento e abriam a boca comendo o fresco da Primavera. As primeiras que chegaram cá a baixo, como onda que rebenta na areia, travavam de rabo deixando-se escorregar no chão, bêbadas e excitadas, perdidas em risos balidos, uma ou outra a chorar de rir agarrando-se à barriga!

Bom, na verdade dali eu mal conseguia ver os ovinos. Via sim, mas melhor ouvia, um rebanho de ovelhas descendo o monte, em correria de miúdos, como as que fazíamos nós em dias de festa de anos pelas barreiras, ainda nos tempos da escola primária - e que, claro, acabavam em curativos aos joelhos e raspanetes pelas nódoas pregadas nos vestidos novos.

Vê-se mais mexer a câmara do que se vêem as ovelhas a resvalar pelo monte. Enfim, é sempre útil um pouco de imaginação!

06 junho 2007

Por São Mamede

26.05.07, Vale de Carvão, PortalegreO Parque Natural da Serra de São Mamede foi criado em 1989. Arruma-se na ponta norte do Alentejo, no distrito de Portalegre, junto a Espanha. Marvão, Castelo de Vide e Arronches são os outros três municípios integrados no limite do Parque.
Em voo de pássaro, a alentejana Serra de São Mamede destoa com bom-gosto do redondo relevo do resto da região. É da altaneira Marvão que se diz ser o lugar onde se observar ver as aves vistas de cima! E é nesta serra que está o ponto mais alto de Portugal, a sul do Tejo. Nesta serra dividem-se as bacias hidrográficas do Tejo da do Guadiana: rio que venha de cima rumo a Oeste casará com o Tejo, os que vier de Este ruma a sul com o Guadiana fará união. Há aqui duas influências climáticas: Atlântico (frio e húmido nas vertentes Noroeste) e Mediterrânico (a verdadeira brasa alentejana nas vertentes Sudoeste). Como tantas outras serras, São Mamede funciona como uma barreira às leis dos ares e proporciona a condensação de humidade, logo facilita existência de chuvas e humidade que refrescando a zona e cativando fauna, flora e malta a passear.
E claro que por aquelas terras, uma vez por outra, lá nos espantamos com fálicas exibições megalíticas com uns cinco mil anos de presença.

De novo a pé, desta vez uma jornada breve de cerca de 12 km, ao início sob o olhar atento da altaneira cidade de Marvão, depois por caminhos estreitados por muros baixos de pedras e por carvalhos antigos para no fim os olhos se perderem sobre o vale. Partindo e chegando a Galegos, o passeio deu direito à travessia da ribeira de Galegos com marmitas gigantes (zonas do leito rochoso da ribeira, moldadas por pancadas dos calhaus que descem em turbilhão as águas); caminhou-se por uma respeitosa calçada de lajego seiscentista; tomou-se um café em terras de Espanha que afinal falavam português; subiu-se ao Castro da Crença, hoje em dia submisso ao domínio de uma vegetação maior que eu - tão submisso que Castro onde estás? piquenicou-se sobre os granitos do Rio Sever, à sombras das falsas mimosas, antes da travessia do Vale de Carvão para atingir a Ponte Velha e finalmente regressar a Galegos. (O 1ºlugar feminino recebeu uma bateria de máquina digital que se julgava perdida há meses! – cansou-se, o objecto, de brincar às escondidas.) E isto tudo reencontrando dois ou três grupos de turistas estrangeiros (e atenção que eram estrangeiros mas não-espanhóis!) que faziam o mesmo percurso. Quem sabe se talvez um dia isto das caminhadas pegue moda em Portugal e tenhamos de as fazer fora dos fins-de-semana e dias feriados!

04 junho 2007

Salada

À esquina do Mercado Municipal, 11:27 de Sábado, 2 de Junho
O Pezinho de Salsa:
Parado de lado, alinhando com preciosidade a sua sombra com a sombra do candeeiro. Vê as horas. Camiseiro branco em balão entalado em calças de cintura bem subida, bainhas curtas a roçar o tornozelo, meia branca ora pois, sapato brilhante sempre. Cabelo escuro lambido à cabeça, testa larga, queixo fino, nariz aquilino, buço ralo tomara que encrespe e coragem esquecida em casa.
O Molho de Brócolos:
Encostado à parede do mercado, uma perna dobrada com pé poisado nas cornucópias no painel de azulejos. Vê as horas. Golas eriçadas da camisa só meio apertada a arejar os cabelos do peito, calças de ganga rotas nos joelhos, bainhas arregaçadas, all star’s às cores da bandeira americana. Franja farta caída sobre testa desviando-se a deixar que os olhos espreitem, barba picada na pele morena, mãos no bolsos e assobio no canto da boca.
A Ervilha-de-cheiro:
Saindo do mercado, passos curtos, traz compras num carrinho de rodas que chiam ao peso cruel. Atrasada. Brancos folhos apaziguam maiores gorduras, faixa larga em tafetá verde faz a vez de cintura, botina de salto curto onde se tenta equilibrar este conjunto roliço. Pele mármore transpirando corando, caracóis cobre colados à face, sardas disputando nariz curto e paciência em fim de vida.


À passagem da menina Ervilha-de-cheiro, o Pezinho de Salsa compõe-se, o Molho de Brócolos emproa-se.
Enche-se de coragem o Pezinho de Salsa (não o faz por expedição nem decisão, mas sim porque já o tentara vai para mais de uma dúzia de vezes): dá três passos, inclina o corpo esguio, estica-lhe uma mão que deixa poisada no ar e oferece-lhe a sua ajuda A Menina permita-me a gentileza…?
Mas soltando-se da parede vem já em passo largo o Molho de Brócolos Oh boa, oh giraça, queres homem que te ajude ou chega-te esse manjerico?
A Ervilha-de-cheiro, que corava por timidez, faz um compasso de espera e cora agora de raiva. De sorriso rematado por covinhas nas bochechas entrega a pega do carrinho ao Pezinho de Salsa. Depois cerra os olhos e, do seu arredondado bom comportamento, vira-se para o Molho de Brócolos e Saíste-me cá um cabeça de nabo!

Ora, já se sabe, se há coisa que um Molho de Brócolos não aguenta é ser chamado de cabeça de nabo e, antes de se ver a ficar com um grande melão, o Molho de Brócolos armou-se da sua melhor virtude e lançou-se ao Pezinho de Salsa, insultando-o Oh seu grandessíssimo cara de Grão-de-Bico!
Estava assim o caldo entornado. Enrolaram-se os três à bulha numa espiral de ofensas e ferimentos às suas almas verdes e viçosas. Três minutos de loucura, de farpas e vapores, de gritos e gemidos, de tabefes e puxões. E lá acabaram os três esparramados no chão, arfando descompassados, de ar murcho e amassados, numa salada misturada com os estilhaços lançados pelo carrinho das compras.

À sua frente reunia-se já uma série gente arrumada numa moldura à contra luz, de contornos equilibrados, excepto ali. Ali, na quase extremidade da moldura, destacava-se uma elegante Cenoura-dos-olhos-bonitos: perna alta tenra, pele bronzeada florescente, pestanas alongadas pisca-a-pisca.
Os três repararam nela, os três se levantaram e se compuseram sacudindo folhas, cascas, flores, pevides, ramos. O Pezinho de Salsa tinha ganho coragem para o resto da vida e limpava a testa com a manga e camisa; o Molho de Brócolos safara-se de apanhar um melão, até ver, e afiava as golas da camisa; a Ervilha-de-cheiro corava de cansaço e enxotava os folhos. Viraram-se todos para a Cenoura-dos-olhos-bonitos.
Os dois primeiros terão pensado que ora ali estava um bom partido para tentarem a sua sorte, e atreveram-se a avançar. A Ervilha-de-cheiro sabia bem quem era aquela e deixou-se ficar mas logo a Cenoura-dos-olhos-bonitos Ai Ludovina o que foi que arranjaste desta vez? Vá, para a esquadra os três prestar declarações! Andor, à minha frente, antes que me façam a cabeça em picles.