20 maio 2007

Carochinha aos quadradinhos

Dobra a esquina um carocha cor-de-rosa. Pára em frente ao toldo que cobre a passadeira vermelha estendida sobre o passeio, desde a entrada do restaurante. Abre-se a porta, sai o chofér de cartola e laço. Contorna o carocha cor-de-rosa. Abre a porta de trás. Uma perninha muito fininha, de colant de mousse preta e salto alto carmim, espreita do banco e puxa atrás de si o corpo mimoso da Carochinha num vestido cor-de-rosa de pintas brancas, folhos ondulados na bainha e nas alças e cintura anelar.

A Carochinha tinha encontrado um notita de 500 euros bem enroladinha entalada numa tábua do seu parquet flutuante. Embonitara-se na clínica de estética ao fundo da rua, fora ao multibanco autorizar saldo para conta do telemóvel, ligara para alguns amigos e agora vinha jantar com o João Ratão, que apesar do nome era apenas um ratinho franzino com pouco ou nenhum ginásio mas o único disponível para esta noite combinada assim, tão ao momento. O burro José estava a jogar consola, ao gato Pingado surgira de urgência um enterro, o cavalo Quim estava em provas de saltos em Estremoz, o porco Tô não respondera, o cão Plexo estava com uma depressão, e o galo Farto de ressaca. Venha o Ratão então.

O restaurante era um mimo. Imaginem em tons de rosa: as paredes com frescos a imitar mármore, as toalhas de mesa em cetim debruado, as cadeiras de costas altas forradas de algodão pele-de-pêssego, as estrelinhas que brilhavam coladas no tecto. Também era cor-de-rosa a luz íntima das velas, era rosa a água leitosa da fonte central que caía para um tanque com peixinhos cor-de-rosa, de rosa se perfumava o ar, e até a música de fundo soava a cor-de-rosa.

Ofuscada pelo ambiente onírico, a Carochinha mal deu pelo João Ratão pardacento que dela se aproximou a medo. Mas foi embrulhados naquele ambiente que lhes veio ao pensamento Oh, como está linda! e Olha, até parece que está mais corpulento! Em coro disseram: há quanto tempo! Como estás? Principiada a sintonia, sentaram-se os personagens à mesa e avançaram pedindo, de novo em uníssono, um consumê de beterraba com aipo e amêndoa pilada. Trocaram sorrisos e, sem que alguma vez o chegassem a saber, pensaram juntos Ai, tanto em comum, em tão pouco tempo… Depois olharam-se olhos nos olhos e esperaram ver surgir faíscas. Mas nada. Esperaram calados. Nada. E uma mesma ideia lhes ocupou a mente Oh não, afinal nada em comum…
Ainda antes da chegada do petisco, o João Ratão pediu licença, levantou-se e foi ao xixi dos nervosos. Passando pelo corredor, o seu nariz agarrou o fio de um cheiro que o puxou até à cozinha. Lá dentro ninguém. Fervia um tacho. E já se sabe, acabou o rato cozido no caldo. Gritaram os cozinheiros, chamaram-se os bombeiros, e logo chegou o INEM com uma viatura super-bem-equipada que pescou o João Ratão, o reanimou e o levou para as urgências com um prognóstico tranquilizador.
Perante tudo isto, a Carochinha viu-se quase viúva antes de ser casada. Ai a minha vida meto-me sempre em histórias da carochinha. Tenho é de me ver livre deste universo limitado ao cor-de-rosa romântico e barato onde com 500 euros se faz uma limpeza de pele, se aluga um carro e se quer casar.

Olhou à volta. Nada para além daquele cor-de-rosa que já começava a ser demais. Fechou os olhos. Abriu os olhos. Outra vez nada. Outra vez fechou os olhos, agora com força e concentrada. Outra vez abriu os olhos. O restaurante tinha ganho uma cor castanho-esverdeado. O tecido de cetim deu lugar a uma lona grossa estampada de camuflado militar, as cadeiras eram agora bancos de pau com pingos de tinta, na fonte duas piranhas algum lodo e qualquer coisa podre a boiar. Cheirava a cigarrilhas e a luz deixava ver o fumo da sala.
Sentado solitário na mesa do fundo, um incrível homem musculado de tez verde. Só vestia uns calções de baínhas rasgadas.A Carochinha achou que não era tarde nem cedo. Chegou-se a ele, esticou-lhe a mão e disse Sou a Carochinha, muito bonita e engraçadinha, Eu sou Dr. Bruce Banner, Hulk para os amigos. És nova aqui! Bem-vinda sejas às histórias aos quadradinhos!

A Carochinha sentou-se e deixou tombar o seu pescoço-caule-de-flor sobre o deltóide de Hulk que lhe fez uma festa no rosto com o dedo indicador. A Carochinha estava decidida, agora ia tentar a sua sorte histórias aos quadradinhos.

3 comentários:

paulu disse...

É pá, a velinha cor-de-rosa que acendi ao S João Evangelista sempre deu resultado! Finalmente um conto! Não digo amis nada, e como diria Sorin, está tudo dito!

RPL disse...

Os meus pais tiveram uma escola chamada Externato João Ratão, cozido e assado no caldeirão.

Essa tal de Carochinha era persona non grata.

E muito sinceramente, vejo sempre com maus olhos a tentativa de recuperação pública dessa criatura. Ainda não passaram dez anos desde a morte do João Ratão. Mais pudor!

Jota disse...

Paulu-Sorin: para além de teres dito tudo lembraste-me, e bem, da reposição!

Descansa Pedro: este par Carochinha/Ratão não foi o que deu nome à vossa escola. Estes dois são outros, são seus primos em 327º grau, protagonistas do nome de uma modernaça sala de Net & Games!