Afoito Berlioz
Ela andava intrigada com esta questão já há coisa de duas ou três semanas. Na verdade, aqueles bonitos sons podiam até ter aparecido antes, não sabia precisar ao certo porque no início mal dava por eles. Depois prestou-lhes alguma atenção mas a cada noite que passava o agrado crescia e agora o gosto era maior, agora ela encantava-se com aquilo. Ficava parada estendida no chão até sentir, por todo o seu corpo, a vibração dos suspiros chegados naquele som, depois esticava ora o pescoço ora a cauda que ondulavam ao ritmo da música e, no final, deixava-se enrolar pelo prazer de um calor sobre as suas escamas. Era um prazer que desconhecia poder chegar-lhe assim, tão bravio, vindo do ar, no meio do escuro.
Ah, mas esta noite ela vai atrever-se. Vai. Vai sair daquela nesga onde se recolhe mal o sol se põe. Vai ver que príncipe é afinal capaz de tal habilidade. Vai talvez com ele casar ou, se não puder, de amor por ele vai morrer.
E seu dito, seu feito, a lagartixa Afoita Tixa subiu esta noite ao palco do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, para assistir a uma sinfonia fantástica de Berlioz, a terceira peça do programa apresentado pela Orquestra Sinfónica de Londres.
Depois da emoção do concerto em sol para um singelo piano de Ravel, interpretado por Javier Perianes, que lhe provocou uma série de tremeliques, foi só graças ao intervalo que recuperou a tempo de se ir colocar sobre o estrado do maestro. Antes do começo ainda um violinista a enxotou de lá com o seu arco, a meio ainda ela se afastou para melhor ver aquele príncipe-artista condutor, em pleno crescendo da sinfonia ainda ela se atreveu a subir pela perna de um violoncelista (que sem perder a postura, e com alguma doçura, a sacudiu logo que pode). Da última vez que a vi tinha, depois de outra tentativa frustrada em subir para o colo de um músico, parado no degrau das harpas. Talvez dali conseguisse ver bem o seu príncipe-artista, o seu animal mímico de batuta em punho. Talvez o maestro Daniel Harding tenha dedicado o encore à Afoita Tixa, a tenha vindo cumprimentar depois e quem sabe se lhe deu um beijo desencantador e a transformou numa linda princesa, com quem casou e com que já vive feliz há muito e muito anos.
Ora imagine então quem quiser as condições em que vivia a Afoita Tixa nas nesgas bolorentas do palco do Coliseu dos Recreios. Imagine quem quiser o que esconde aquela alcatifa vermelha descolada nas pontas, o que está sob aquele chão de madeira pintado a tinta gasta ou atrás do aglomerado de madeira riscada a esfarelar. E imaginem também as conversas da noite entre os músicos e as conversas que vão levar para casa (e lembro-me agora das que trouxemos de África).
Eu calculo, e ponho as minhas mãos no lume, em como a Afoita Tixa aprecia a sala do Coliseu e a música que nela se faz com mais gosto e estima do que os engenheiros que desta sala deviam cuidar.
Ah, mas esta noite ela vai atrever-se. Vai. Vai sair daquela nesga onde se recolhe mal o sol se põe. Vai ver que príncipe é afinal capaz de tal habilidade. Vai talvez com ele casar ou, se não puder, de amor por ele vai morrer.
E seu dito, seu feito, a lagartixa Afoita Tixa subiu esta noite ao palco do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, para assistir a uma sinfonia fantástica de Berlioz, a terceira peça do programa apresentado pela Orquestra Sinfónica de Londres.
Depois da emoção do concerto em sol para um singelo piano de Ravel, interpretado por Javier Perianes, que lhe provocou uma série de tremeliques, foi só graças ao intervalo que recuperou a tempo de se ir colocar sobre o estrado do maestro. Antes do começo ainda um violinista a enxotou de lá com o seu arco, a meio ainda ela se afastou para melhor ver aquele príncipe-artista condutor, em pleno crescendo da sinfonia ainda ela se atreveu a subir pela perna de um violoncelista (que sem perder a postura, e com alguma doçura, a sacudiu logo que pode). Da última vez que a vi tinha, depois de outra tentativa frustrada em subir para o colo de um músico, parado no degrau das harpas. Talvez dali conseguisse ver bem o seu príncipe-artista, o seu animal mímico de batuta em punho. Talvez o maestro Daniel Harding tenha dedicado o encore à Afoita Tixa, a tenha vindo cumprimentar depois e quem sabe se lhe deu um beijo desencantador e a transformou numa linda princesa, com quem casou e com que já vive feliz há muito e muito anos.
Ora imagine então quem quiser as condições em que vivia a Afoita Tixa nas nesgas bolorentas do palco do Coliseu dos Recreios. Imagine quem quiser o que esconde aquela alcatifa vermelha descolada nas pontas, o que está sob aquele chão de madeira pintado a tinta gasta ou atrás do aglomerado de madeira riscada a esfarelar. E imaginem também as conversas da noite entre os músicos e as conversas que vão levar para casa (e lembro-me agora das que trouxemos de África).
Eu calculo, e ponho as minhas mãos no lume, em como a Afoita Tixa aprecia a sala do Coliseu e a música que nela se faz com mais gosto e estima do que os engenheiros que desta sala deviam cuidar.
2 comentários:
Muito concerto já não deve ter ouvisto a afoitíssima Afoita Tixa! Eu cá desconfio que a sua insistência em subir pelos músicos acima se calhar era para corrigir qualquer coisinha... Ou, pelo menos, para verificar se a música estava a seguir bem a partitura.
Mas que grande apanhado, Jotinha!
Os aplausos merece-los a melomaníaca Tixa (hoje em lua-de-mel por terras da França deste romântico compositor).
(só agora adicionei vários links ao texto.)
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