04 junho 2007

Salada

À esquina do Mercado Municipal, 11:27 de Sábado, 2 de Junho
O Pezinho de Salsa:
Parado de lado, alinhando com preciosidade a sua sombra com a sombra do candeeiro. Vê as horas. Camiseiro branco em balão entalado em calças de cintura bem subida, bainhas curtas a roçar o tornozelo, meia branca ora pois, sapato brilhante sempre. Cabelo escuro lambido à cabeça, testa larga, queixo fino, nariz aquilino, buço ralo tomara que encrespe e coragem esquecida em casa.
O Molho de Brócolos:
Encostado à parede do mercado, uma perna dobrada com pé poisado nas cornucópias no painel de azulejos. Vê as horas. Golas eriçadas da camisa só meio apertada a arejar os cabelos do peito, calças de ganga rotas nos joelhos, bainhas arregaçadas, all star’s às cores da bandeira americana. Franja farta caída sobre testa desviando-se a deixar que os olhos espreitem, barba picada na pele morena, mãos no bolsos e assobio no canto da boca.
A Ervilha-de-cheiro:
Saindo do mercado, passos curtos, traz compras num carrinho de rodas que chiam ao peso cruel. Atrasada. Brancos folhos apaziguam maiores gorduras, faixa larga em tafetá verde faz a vez de cintura, botina de salto curto onde se tenta equilibrar este conjunto roliço. Pele mármore transpirando corando, caracóis cobre colados à face, sardas disputando nariz curto e paciência em fim de vida.


À passagem da menina Ervilha-de-cheiro, o Pezinho de Salsa compõe-se, o Molho de Brócolos emproa-se.
Enche-se de coragem o Pezinho de Salsa (não o faz por expedição nem decisão, mas sim porque já o tentara vai para mais de uma dúzia de vezes): dá três passos, inclina o corpo esguio, estica-lhe uma mão que deixa poisada no ar e oferece-lhe a sua ajuda A Menina permita-me a gentileza…?
Mas soltando-se da parede vem já em passo largo o Molho de Brócolos Oh boa, oh giraça, queres homem que te ajude ou chega-te esse manjerico?
A Ervilha-de-cheiro, que corava por timidez, faz um compasso de espera e cora agora de raiva. De sorriso rematado por covinhas nas bochechas entrega a pega do carrinho ao Pezinho de Salsa. Depois cerra os olhos e, do seu arredondado bom comportamento, vira-se para o Molho de Brócolos e Saíste-me cá um cabeça de nabo!

Ora, já se sabe, se há coisa que um Molho de Brócolos não aguenta é ser chamado de cabeça de nabo e, antes de se ver a ficar com um grande melão, o Molho de Brócolos armou-se da sua melhor virtude e lançou-se ao Pezinho de Salsa, insultando-o Oh seu grandessíssimo cara de Grão-de-Bico!
Estava assim o caldo entornado. Enrolaram-se os três à bulha numa espiral de ofensas e ferimentos às suas almas verdes e viçosas. Três minutos de loucura, de farpas e vapores, de gritos e gemidos, de tabefes e puxões. E lá acabaram os três esparramados no chão, arfando descompassados, de ar murcho e amassados, numa salada misturada com os estilhaços lançados pelo carrinho das compras.

À sua frente reunia-se já uma série gente arrumada numa moldura à contra luz, de contornos equilibrados, excepto ali. Ali, na quase extremidade da moldura, destacava-se uma elegante Cenoura-dos-olhos-bonitos: perna alta tenra, pele bronzeada florescente, pestanas alongadas pisca-a-pisca.
Os três repararam nela, os três se levantaram e se compuseram sacudindo folhas, cascas, flores, pevides, ramos. O Pezinho de Salsa tinha ganho coragem para o resto da vida e limpava a testa com a manga e camisa; o Molho de Brócolos safara-se de apanhar um melão, até ver, e afiava as golas da camisa; a Ervilha-de-cheiro corava de cansaço e enxotava os folhos. Viraram-se todos para a Cenoura-dos-olhos-bonitos.
Os dois primeiros terão pensado que ora ali estava um bom partido para tentarem a sua sorte, e atreveram-se a avançar. A Ervilha-de-cheiro sabia bem quem era aquela e deixou-se ficar mas logo a Cenoura-dos-olhos-bonitos Ai Ludovina o que foi que arranjaste desta vez? Vá, para a esquadra os três prestar declarações! Andor, à minha frente, antes que me façam a cabeça em picles.

3 comentários:

paulu disse...

Então não é que já tinha eu ido buscar a saladeira e tu mandas esta malta toda para a esquadra da polícia? Que desperdício... Ao menos uma panela da sopa! Ou até um daqueles recipientes de ir ao micro-ondas! Agora uma esquadra da polícia para uma história tão apetitosa. Bah! E depois disto como é que vou arranjar pachorra para ir à chatice do supermercado? Bah! Olha, vou trincar umas cerejas para esquecer.

Jota disse...

Eu própria não gostei nada deste fim. Não os queria ter mandado para a esquadra, mas já não aguentava mais a cenoura a dizer que "não" aos outros finais.
Boas cerejas!

Anónimo disse...

Mais vale acabar assim,pão pão queijo queijo, do que ficar tudo em águas de bacalhau.