15 julho 2007

Iindo eu, indo eu...



Vaca-loira
Lucanus cervus

atentem nas asas papel-de-seda amarela
mal escondidas na ponta do corpo

A caminho da citânia de Briteiros, tendo iniciado o caminho há pouco e portanto cheia de fé e de genica, resolvi tomar um pequeno desvio de 800+800 metros para ir até Portuguediz. Esperava pelo menos desvendar o mistério de um nome daqueles no meio do mato.

Passei uma bonita ponte com-jeitinho-não-vá-ela-cair, feita só de pedras que se comprimiam entre as margens do Rio Febras (quem preferir pode tratá-lo pelo seu outro nome, Rio Várzea). Tentei adivinhar por onde estaria o caminho mas as ervas dominavam. Ajudaram-me umas fitas plásticas de vermelho e brancas, resíduos de uma prova de motas todo-o-terreno. De seguida meti um pé numa cova larga, afundei-me e as ervas ficaram num repente mais altas do que eu. Quando voltei a subir o buraco, as ervas continuavam a tapar-me a vista. Estiquei-me e nada mais que ervas. Uns passos à frente e para além das ervas: silvas! Levei a mão à cintura, apalpei um lado e depois outro… azar! não tinha trazido a catana. E a curiosidade sobre o que diz Portuguediz passou-me logo de moda. Voltei a descer orientada pelas fitas vermelhas e brancas, voltei a passar a ponte só de pedra só e passados uns metros dei de caras com um g’anda touro. Atravessava com tal ligeireza o caminho atapetado de folhas fofas de carvalho que algumas até pareciam empurrá-lo para cima. Era um escaravelhão de todo o tamanho com uma tal tenaz na fuça que mais fazia lembrar um verdadeiro par de cornos.

Em Portugal chamamos-lhe Vaca-Loira. Noutros países da Europa lembraram-se de Veado Escaravelho (Stag beetle) Veado Voador (Cerf-volant ou Ciervo Volante), Touro, ou Veado, dos Carvalhos (na Escandinávia), e como alternativa Galega um melodioso Escornaboi.
Nós, os portugueses, cambiámos o veado pela vaca e muito bem o fizemos porque, para além de não termos por cá grande fartura de veados, temos a típica vaca da região, a barrosã, com um par deles tal-qual estes. Mas porque raio fomos nós chamar Loira a este escaravelho-vaca é que ainda não consegui entender.

O Lucanus cervus é mesmo um dos maiores escaravelhos da Europa e considerado o maior de Portugal. Tão grande que alguns machos chegam aos 8cm. Este que pude observar era, como vos disse, um touro! Sem querer exagerar (e porque para além da catana também não levava régua) diria que tinha pelo menos 7 cm! Habitam em matos e florestas e são uns ecológicos trabalhadores na reciclagem de árvores mortas.

Apesar de ser um bicho inconfundível, o Lucanus cervus leva uma vida afastada dos paparazzi e por isso poucas certezas há a seu respeito. Encontrei algumas disparidades em factos que deveriam ser concretos (pesos, medidas, anos) e assim sendo preferi, para fazer este post, usar os valores apresentados no Plano Sectorial da Rede Natura 2000, pelo INC em Janeiro de 2006 (ver referência do site no fim do post) ainda que não sejam resultado de estudos levados a cabo exclusivamente em Portugal.

Não sendo uma raridade este bichos são preciosos e é necessária alguma sorte para os ver assim, nesta fugaz fase da sua vida, armados de capacete cornudo. É que a Vaca-Loira tem um ciclo de vida especialmente desproporcionado e longo.
Filha de ovos entalados em frestas de troncos, cresce larva alimentando-se do que restará da árvore. São entre 1 a 7 anos de pura engorda. Num fim de Verão, a larva enterra-se e envolve-se num casulo. A pupa demora 6 semanas a transformar-se, mas fica escondida à espera do calor. Entre o fim de Maio e o Agosto de um mesmo ano, estes adultos depois de tanto terem marinarado, dão o tudo por tudo para se reproduzirem. Ao macho cumpre voar (aqui está uma boa foto do Vaca-Loira de asas abertas) em procura da fêmea e fá-lo geralmente ao fim do dia. Alimentam-se de sumo fruta (ou talvez de nada). Ambos têm pressa, muita pressa, porque passados estes 3 meses, e tendo ou não cumprido a sua incumbência, morrerão.
As hastes do macho servem para lutar contra outros machos. Matar ou morrer são acontecimentos possíveis mas muitas vezes a luta apenas serve para tirar o mais fraco do caminho (tronco abaixo, por exemplo). São também usadas para reter a fêmea durante o acto sexual (cuidado com os menores, papás!). As hastes da fêmea, com pouco destaque e aparentemente inofensivas, servem para morder e são venenosas.

Baralha-me este estilo de vida "descartável", como uma larva tantos anos cega que se transforma na mais bonita e alegre das crisálidas para morrer no instante de um sopro.
Acho que sei da existência de umas pessoas assim. Quer dizer, nenhum hominídeo aspira a rematar a sua testa com umas hastes destas, mas em vez disso alguns compram carros ou pagam músculos no ginásio para cativarem um parceiro sexual. Tal Vaca-Loira vivem só para isto durante o breve instante em que se esgota o fósforo da sua vida.
Despeço-me espantada como a natureza se deixa consumir assim, e enjoada de olhar para o cleóptero e suas antecessoras larvas.

O Lucanus cervus está incluído no anexo II da Directiva “Habitats” que agrupa o que foi considerado “ameaçado no território da União Europeia”.

Para este post recorri a vários sites. Os preferidos foram: ICN,Young People's Trust for the Environment,e o melhor para o fim, até porque depois descobrirão que este tem alma portuguesa! com destaque merecido para a criativa demonstração do ciclo de vida do Lucanus cervus.





Tão pintadinhas de fresco que ainda falta limpar as ervas
(pois, e fazer um mapa)

8 comentários:

Quico (Francisco Freire) disse...

Belo Post Jota! O 'loira' não será da cor clara das asas de seda? Mas o nome meu favorito é mesmo o galego: E S C O R N A B O I ! :-)

Anónimo disse...

Pois era isso que eu vinha dizer...: eu não vejo muito bem, mas tu na legenda da foto dizes «atentem nas asas papel-de-seda amarela»...

Também achei muito giro o post, que li todinho.

Com tanto arranhão, vezes perdida, falta de mapa,... foi mesmo o encanto do que encontraste que te animou, não?

goncas disse...

Escornaboi é de facto um nome muito bonito, e é a legenda perfeita para a fotografia deste bicho impressionante. As asas são surpreendentes: é estranho como parecem destoar do resto do corpo, pelo seu aspecto frágil.

(Um pouco ao lado: tinha uma colega na faculdade que se lamentava muitas vezes com nostalgia por não falarmos galaico-português. Este nome galego, tão sugestivo, fez-me percebê-la um pouco melhor.)

Anónimo disse...

Por motivos profissionais, devia regularmente assinar os relatórios de uma empresa de controlo de pragas. Num emaranhado de fórmulas/produtos químicos utilizados, factores de correcção, somatórios, nomes científicos, nomes comuns, nome da empresa e apelido do desbaratizador eis que um dia surge inesperadamente uma nova variedade de insecto encontrada "barata loira americana". Saltou logo da minha imaginação uma barata com aspecto de Jessica Rabbit, de vestido vermelho justo e curvas sensuais.
Nunca cheguei a saber se o técnico estava a gozar comigo, porque barata americana existe, é a Periplaneta americana, mas "loira" parece-me creatividade de jovem estimulada pelo adiantado da hora. É que as desinfestações só se podem realizar fora de serviço.

paulu disse...

Escornaboi? Bom, é de facto um nome bonito, mas... Veado escaralelho? Desculpem, mas já viram mesmo um veado? E vaca-loira? Este do vaca-loira, então... Eu se fosse vaca, ofendia-me; se fosse loira, também; e então se fosse escaravelho, com um alicate daqueles havia dedos cortados pela certa. A mim parece-me antes um abre-cápsulas. E prefiro, porque os abre-cápsulas não se ofendem, e o lucanus cervus pode perfeitamente treinar com um para desenvolver a sua virilidade.

Ademais está um belo «post», bem daqueles que eu gosto!

Jota disse...

Quico: Talvez seja das asas, ou de umas riscas amarelas que me parecem lhe articulam as partes do corpo, ou então é mesmo demência como diz o Paulu! (e tens de abrir a hostes mais vezes! isto é que foi uma bela correnteza de comentários…)
Raquel: Leste todinho? Upi! Isso é bom sinal. Esclareço que os lugares por onde passei não tinham especial encanto, aliás como podes ver pela feiura deste Escornaboi, pela ameaça das silvas, pelo calor, pelo mapa que nem Chinês sabia falar... Ainda assim nunca me senti desanimada, nem precisada de buscar animação (fibra moura!)
Goncas: em voo ainda parece mais difícil de crer que aquela fina seda faça erguer aquele corpalhão. Deve fazer cá um barulho de reactor…
Ilunga: fica prometido que da próxima vez que me cruzar com uma Vaca-loira lhe pergunto se tem alguma prima americana chamada Barata-loira!
Paulu: Um abre caricas? Será essa visão consequência de uma sede estival! Eu vejo um corta-unhas-do-dedo-grande-do-pé. Até encolho os meus dedinho, ui! (Ah, pois foi, esqueci-me da manicure hoje depois do banho!)

Belos comentários!
(mas falta o Pedro Lérias... estás de férias?)

RPL disse...

lol Era bom era! Mas li tudinho, este e outros, tenho é andado pouco inspirado. Desde que recebi ameaças de uma mosca que não durmo bem. Se calhar é isso, contrato o EIB (escaravelho in black) para me proteger!

Gosto do escornaboi e também gosto muito da Galiza! Com galegos é que nunca confraternizei muito...

Só vi um destes bichos uma vez, morto, afogado num tanque, tipo Ofélia, asas (cabelos) louras espalhadas à superfície, a promessa de uma juventude perdida:

"No plaino abandonado,
onde a respigadora se perde,
de cornos trespassado
- dois, de lado a lado,
jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a couraça o sangue,
de élitros estendidos,
negro, louro, exangue,
fita com olhar langue
e cego os céus perdidos"
(...)
"De outra algibeira, alada
ponta a roçar o solo,
a lourura embainhada
de uma asa membranosa ...
Deu-lhe o cornudo velho
que o trouxe ao colo.

Lá longe, na toca, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Teias que a natureza tece!)
Jaz morto, e apodrece,
o escarnoboi de sua mãe."

Vaca-loura de sua mãe pareceu-me excessivo!

E pensar que em vez desta pessoa elegeram o azar do sal... tscc, tsccc...

Anónimo disse...

Já viste Pedro, a tormenta desta mosca fez soltar um poeta em ti!
Que belo remake, que belo poema! Fez chorar cada um dos meus ocelos.
Pobre da vaca-loira a mãe que espera...