30 março 2008

Santa Apolónia agora


O tempo passou e hoje, ao contrário do que canta Jorge Palma, Santa Apolónia já não arrota magotes de gente do seu pobre ventre inchado, sujo e decadente.
Agora, os Magotes ou andam de carro ou, se chegam de comboio, descem logo no Oriente. Agora, o Ventre saiu de uma operação estética que alisou, reestruturou e aperaltou a barriguinha desta Santa amiga dos dentes.

Santa Apolónia está de uma desinfecção cirúrgica. Nas paredes não há uma única mancha de sola de bota à espera do comboio, não há beatas espalmilhadas no chão, não há lixo de má pontaria à beira de um caixote nem à beira da linha, nem há pastilhas elásticas a fazer parte do chão. Não cheira a rodas travadas nem a óleo de comboios e até os desgraçados dos pombos viram reduzidos os seus lugares no estendal das catenárias à conta daqueles picos que lhes colaram os engenheiro - portanto não há cagadelas de pombo a colorir e a dar expressão a plataforma do cais.
Santa Apolónia tem falta de sujidade. Espero que isto lhe passe depressa. Mas, diga-se, há também que aproveitar a paisagem. Em terra com uma estação de comboios assim tão imaculada até parece impossível que haja um lado errado da noite.

Aquele senhor de bengala de cego que se vê (ou quase se vê) mesmo à esquerda da foto (um clique para aumentar), andava ali de um lado para o outro, a abengalpar a esquina, as arcadas que comunicam para a sala de espera, o gradeamento que nos protege da linha, a rampa de acesso ao comboio e com certeza outras coisas mais que com olhos não se vêem. Repetindo o percurso, abengalpava com calma, sem pressa nem ar perdido, com a tranquilidade de quem observa e regista para si.
Apareceu uma senhora apressada carregada por sacos de plástico que se ofereceu para o levar a algum lado, a alguma linha:
- Não, não preciso de ajuda obrigado. Estou só a ver.

4 comentários:

paulu disse...

E não foi só sonasol com amoniacal, picos espeta pombo, e telhados de vidro (daqueles de proteger dos caprichos do céu). Do outro lado da avenida, uma cerca de arame farpado resguarda Santa Apolónia de ataques do terrível Tejo. Não vá o estuário dar-lhe a volta à beatitude e levar a padroeira dos dentistas a uma tasquinha de Alfama, ou uma pensão-piolho da Graça. Ou ambas as coisas, quem sabe? Eu tenho esperança: pode ser que o teu cego seja o diligente alcoviteiro de serviço.

sonia disse...

Oi joana!! cómo é que está tudo? mando-te um beijao bem grande para ti e para o Francisco, e o Luis!

Sonia

Anónimo disse...

Gostei.
Santa Apolónia era uma estação de emoções.
Nas despedidas, quando as portas não eram automáticos, os beijos e o dar das mãos só se desfaziam quando comboio era mais rápido do que as pernas de quem ficava no cais.
E nas chegadas, nunca vi abraços tão abraços como os de Santa Apolónia. Abraços de esmagar ossos, sem olhar a idades, alturas, nacionalidades ou outras diferenças sociológicas. Abraços dados com os braços, com os olhos e com o corpo todo. Quem assistia a estes abraços sente um nó na garganta e os olhos comovidos, como a emoção que temos ao ver um filme ou ao assistir a uma vitória portuguesa nuns Jogos Olímpicos.
Agora na asséptica Santa Apolónia, já não há abraços destes e os que se podem ver soam-me ao cínico “Então um abraço!” que me dizem, ao telemóvel, à laia de despedida quando me recuso a fazer um qualquer favor e que devem ser traduzidos por “Vai à merda!”.
É por isso que agora desço sempre no Oriente.

likur disse...

eu lembro-me como era santa apolonia antes do oriente... era suja, era feia, era demasiada confusão, ainda bem que fizeram o oriente agora até dá gosto ir para santa apolonia um pouco mais cedo que a hora do comboio, espero que nunca a fechem detestaria ter que fazer meia cidade de metro naquela estação ventosa e completamente descaracterizada do que é lisboa.